segunda-feira, 18 de junho de 2007

As pernas


Paralisia. Coceira.
Somente uma mulher (ou um homem) para estar parado horas em frente à televisão. Ou em frente a um juiz ou em frente a um semáforo ou em frente a uma vitrine ou em frente a um senhor que, por não ter as duas pernas se locomove sobre um skate e dorme atravessado numa calçada do bairro.
Em frente ao senhor do skate pode-se pensar que as cadeiras de roda são supérfluas, pois, só têm duas rodas enquanto que os skates têm quatro – quase ode ao começo do mundo. Porém, em frente a este senhor - ali parados ou chupando picolé por conta do demasiado calor da urbe - não pensamos no mundo. No máximo pensamos que temos sorte em manter vivas as nossas pernas, afinal, quem tem pernas é livre. Embora tenhamos uma sensação de liberdade só pelo simples fato de termos nossas pernas unidas ao nosso corpo, todos nós sabemos que pernas livres são aquelas calçadas, lavadas, limpas, em alguns casos depiladas e, sobretudo, brancas. As outras, apesar de serem pernas e funcionarem muito bem e correrem como poucas, não são livres.
Talvez, por conta desta terrível sina, as pernas do senhor do skate tenham desaparecido – negaram-se a cumprir um papel pró-forma e preferiram dar-se ao luxo de serem obscena e livremente amputadas.
Cada qual com sua sina ou, como disse o poeta, com sua cova.
Liberdade também é tema de...
Enfim, é um tema importantíssimo alvo de muitas e variadas especulações.
A liberdade e a especulação, aliás, estão intimamente relacionadas, embora se defenda por aí que liberdade é coisa séria, ou seja, com ela não se brinca.
Liberdade não se pega e não se toca. É, portanto, substantivo abstrato. Assim como o ar (apesar das especulações químico/físicas), o mau humor, o ódio... enfim, todas essas palavras que aprendemos a dizer e a utilizar.
Hoje em dia o fundamental é utilizar. Para que algo seja utilizado é necessário que seja útil e para que seja útil necessário é que seja concreto, assim, não existe mais espaço para os substantivos abstratos, embora todos sejamos livres e nisto ninguém toca! - o que comprova a existência dos substantivos abstratos...(?!)
Conformemo-nos e apreciemos a dialética paradoxal de nossos tempos de progresso, civilização e inteligência. Exaltemos as maravilhas criadas pelo homem e pela mulher! Apesar de serem estes os mesmos (e únicos) capazes de estarem parados durante horas em frente da televisão, ou em frente a um juiz, ou mesmo em frente a um muro.


Marcia Bernardes
Kapota

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